Se não fosse pelo meu treinamento
nessa quinta, 6 de novembro, eu teria saído mais tarde de casa e teria
reclamado do transito da marginal pinheiros, em São Paulo. Se eu tivesse
acordado na hora que me programei e saído de casa 20 minutos antes como
planejado, eu teria passado reto e nem saberia o que ocorreu. Nada do que eu
fizesse neste dia, nem a ordem dos eventos, teria mudado o fato. A única coisa
diferente, não seria eu a contadora dessa historia. Talvez ninguém contasse
essa historia, os jornais só divulgaram uma nota para justificar o transito – “Um
homem de cerca de 40 anos se jogou da Ponte Eusébio Matoso. Três viaturas do
Corpo de Bombeiros foram para o local. Não há informações sobre o seu estado de
saúde. Como reflexo, a ocorrência
congestionou as marginais.” Talvez ele merecesse mais que um parágrafo e
talvez sua vida ou sua morte importasse mais do que congestionar as marginais. Meus
pulmões não são tão fortes para eu gritar para todo mundo “Ei! Ele se acabou no
chão feito um pacote flácido e agonizou no meio do passeio público!”, e nem
minha mente tão forte para reviver a mesma historia varias vezes, por isso contarei
uma vez só.
Eu estava, como a maioria dos
paulistanos, sozinha no carro me dirigindo para meu trabalho, quando uma
pessoa, que talvez fosse um boneco, caiu lentamente do céu e caiu no teto de um
carro branco a minha frente e rodopiou para o asfalto frio. Se eu continuasse
eu passaria pelo seu crânio, se eu não parasse não teria sangue em minhas
veias. Parei o carro, antes de qualquer coisa, antes de sair do carro, antes de
pensar, eu liguei para a emergência. 911, não esse é dos Estados Unidos, é 191,
acho que esse é da policia, 192 acho que é dos bombeiros, 1 – 9 – 2 Na verdade, 190 é policia militar, 191
é policia rodoviária federal, 192 é ambulância e 193 é bombeiros. Sério Brasil,
não seria mais fácil ter só um numero para emergências? Eu consegui ligar para
o numero certo, mas acho que fui só eu porque as outras pessoas estavam no
telefone e depois não estavam. O que aconteceu? Ligaram para a mãe? Ligaram
para o 911? Porque só eu fiquei recebendo as instruções de primeiros socorros?
O que aconteceu com o resto?
Ele caiu de bruços, no inicio
ainda estava respirando forte pela barriga, NÃO MUDA ELE DE POSICAO, o rapaz do
192 foi bem claro, ele teve espasmos, e então começou a respirar cada vez mais
fraco. Morreu, já era, ouvi um motoqueiro dizer, ele foi ficando com a boca e o
nariz cada vez mais roxo. A CET (Companhia de Engenharia de Trafego) chegou, o
rapaz da CET virou o homem de roupas simples de lado, usou seu sapato gasto
como travesseiro. Eu avisei no telefone e a resposta “aí é responsabilidade
dele, você não mexe no corpo”. Ao ficar de lado, ficou visível que ele estava
ferido na barriga, ele tinha uma marca enorme de uma cicatriz cirúrgica e em
cima, sangue e um buraco. Será que ele foi esfaqueado lá de cima? Será que ele
se cortou na queda? E como uma pessoa pode estar lá em cima? A ponte em questão
era a ponte Goldfarb, um pouco antes de Eusébio Matoso, uma ponte mais alta que
as demais e lá em cima não há área de pedestre, lá em cima havia um ônibus com
as janelas abertas, teria ele pulado de dentro do ônibus?
Apos o CET mantê-lo de lado, eu
não consegui mais acompanhar a respiração. Coloca o rosto perto do nariz e da
boca, dizia um, não se aproxima dai não, dizia outro. Eu não consigo sentir a
respiração. Vira ele de barriga para cima, tem algo obstruindo a boca e o
nariz? Dentes quebrados, sangue, mas nenhuma obstrução. Coloque a mão na testa
dele e outra no queixo e incline a cabeça para traz. Agora coloque sua mão no
peito e a outra por cima. Não faz isso não moça. O CET não me deixou seguir com
a massagem cardíaca, naquele ponto talvez fosse inútil, creio que ele já estava
morto. Ele pegou meu celular e falou com o rapaz da emergência. A ambulância e
os bombeiros chegaram. Nós não temos treinamento e você não tem proteção, você
não sabe o que ele tem e o que pode acontecer se encostar no sangue. Eles
querem que você faça, mas se o delegado achar que foi algo que você fez, então você
pode ter um problemão. Com estas palavras eu fui liberada pelo CET. Segui meu
caminho, cheguei no trabalho, sentei, levantei e finalmente chorei pelo rapaz
de roupas simples, sapatos gastos que não conheci até sua ultima agonia.
“Dançou e gargalhou como se fosse o próximo / E tropeçou no céu como se ouvisse
música / E flutuou no ar como se fosse sábado / E se acabou no chão feito um
pacote tímido / Agonizou no meio do passeio náufrago / Morreu na contramão
atrapalhando o público”